Tite teve uma passagem marcante pelo Santos na década de 60 (Crédito: Reprodução)

Por Vinícius Cabral, especial para o DIÁRIO DO PEIXE

“Gol de esmola eu não faço”. Foi assim, bradando a plenos pulmões, que aquele baixinho invocado chutou para a arquibancada, de propósito, um passe açucarado dado pelo seu amigo Pelé. O Rei deixou toda a defesa adversária no chão e ofereceu o gol aberto ao ponteiro. A insólita cena tem explicação: Tite, um dos maiores pontas da história do Santos, estava prestes a ser negociado com o futebol mexicano, um oásis nas décadas de 60 e 70, e nada melhor do que marcar um gol contra o Chivas em Guadalajara para impressionar os olheiros daquele país.

Mas Tite tinha uma personalidade forte, muito forte. Jamais aceitaria impressionar alguém marcando um “gol de esmola”. A negociação não se concretizou e Tite seguiu cumprindo seu papel naquele plantel vencedor do Santos.

Com mais de 30 anos, jogar naquele país não era má ideia, ainda mais ao tomar conhecimento que as cifras que os mexicanos pagavam eram bem superiores às das oferecidas no futebol brasileiro. Tite, assim como outros jogadores daquele elenco do Peixe, era amigo do cantor Lucho Gatica, um amante do futebol. Como o artista era influente entre os dirigentes esportivos, Tite pediu para que ele o indicasse.

Estava tudo ajeitado, inclusive com o técnico Lula, que prometeu lançar o ponta no intervalo, no lugar do titular Pepe. Tudo ocorria de acordo com o roteiro idealizado por Tite. Em campo o Santos ia batendo o Chivas por 3 a 1 e Tite já imaginava o que fazer para poder impressionar os olheiros mexicanos. Porém, viu Pepe pronto para voltar para o segundo tempo, e logo ficou contrariado. Emburrado, como se diz na gíria, sem fazer a mínima questão de disfarçar seu descontentamento. O tempo foi passando e nada de Tite entrar. Quando faltavam cinco minutos, finalmente foi a campo e viu de perto Pelé fazer aquela jogada mágica. Seu chute para arquibancada causou incredulidade ao Rei do Futebol, todos os outros jogadores e os 50 mil torcedores presentes no lendário Estádio Jalisco.

Passada a revolta inicial, primeiro com Lula, que não o escalou no intervalo como prometera e depois com Pelé, Tite entendeu que o matreiro treinador não queria perder um de seus principais jogadores, já que ainda era muito útil para o time, como o tempo mostrou na sequência.

Se antes era uma das maiores referências e artilheiro do time, com o passar dos anos virou um reserva de luxo, que sempre dava conta do recado quando solicitado pelo técnico Lula. Após essa inusitada cena, que ocorreu em 1961, o ponteiro seguiu por mais três anos no quadro alvinegro, conquistando todos os títulos possíveis para um jogador.

Mas a carreira de Titoca, como era chamado pelos companheiros do Santos, começou bem antes, em Campos dos Goytacazes, interior do Rio de Janeiro, cidade onde nasceu, no dia 04 de junho de 1930. Foi lá que o bebê foi chamado de Tite pela primeira vez. Isso porque sua irmã Júnia não conseguia pronunciar seu nome de batismo: Augusto. Foi lá também que o garoto franzino deu seus primeiros chutes e aprendeu a escapar das botinadas da zagueirada adversária. Em Campos, Tite moldou um dos traços mais marcantes de sua personalidade: não levava desaforo para casa. Destemido, driblava cada vez mais as crianças maiores na medida em que ia sendo caçado em campo. O drible foi um de seus maiores companheiros desde criança, até a fase profissional, quando já era um jogador consagrado.

Aos poucos os amigos e familiares notavam que o garoto levava jeito para o futebol e o caminho natural foi procurar um time que proporcionasse melhores condições. Com isso, o escolhido foi o Goytacaz FC em 1942. Tite chegou para atuar na categoria infantil e ajudou o time a levantar canecos logo em seu primeiro ano. Em 1945 foi para o juvenil onde também colecionou títulos e passou a chamar a atenção dos clubes maiores.

Fluminense, a porta de entrada no profissionalismo – em 1948 foi para o Fluminense, ainda como juvenil, onde abocanhou outros títulos. Em 1950 tornou-se profissional e foi um dos destaques da excursão do Fluminense pela América do Sul. Ao todo, participou de 37 partidas e marcou 14 gols em um ano e quatro meses no Tricolor.

Sua estreia ocorreu da melhor maneira possível. Alinhou como titular do meio campo do time que contava com gigantes do futebol brasileiro como Didi e Castilho. Tite atuou pelo lado direito da meiúca tricolor, mostrando toda sua polivalência. A vitória por 3 a 1 contra o São Paulo pelo Torneio Rio-São Paulo causou boa impressão na torcida que compareceu ao estádio de São Januário.

O Fluminense fez campanha ruim na competição interestadual, terminando na última colocação. No meio dos jogos do Rio-São Paulo, os cariocas foram excursionar pela América do Sul, como era o costume da época. Tite alternou jogos em que não saiu do banco, com partidas como titular. Em uma delas, contra o Alianza Lima, anotou um gol de falta, seu primeiro com a camisa tricolor, no empate por 1 a 1. Foi regular no time titular durante boa parte da excursão e anotou gol também contra o Barcelona de Guaiaquil, na vitória por 6 x 4. Fez um hat-trick contra o Norte América e consolidou-se como um dos destaques da viagem. O Flu alternou amistosos no Rio de Janeiro e outras viagens pelo Continente, já que o foco total do país estava voltado para a disputa da Copa do Mundo.

O Tricolor empatou amistoso contra o selecionado chileno, que estava em preparação para o Mundial por 2 a 2, com um dos gols anotados por Tite. Foi para a rede também contra o futuro campeão do mundo Uruguai, no Estádio Centenário, no empate por 1 a 1 e também no empate por 3 a 3. O empate por três gols ficou marcado pela maneira tendenciosa que o árbitro Esteban Marino conduziu o confronto. O apitador influenciou diretamente no placar após o Fluminense abrir 3 a 0, gerando grande revolta nos jogadores. O técnico Otto Vieira já enxergava em Tite um dos pilares da equipe e após a gira sul-americana, o jovem se consolidou.

Primeiros jogos no Maraca

O Tricolor não fez boa campanha no primeiro Campeonato Carioca com jogos realizados no Maracanã, terminando o certame na sexta posição. O “maior do mundo” foi liberado para jogos de times após a realização da Copa do Mundo, que culminou com o Maracanazzo. Tite esteve presente na primeira partida do clube no estádio: empate em 2 a 2 contra o Olaria. Coube a Orlando Pingo D’Ouro anotar os dois primeiros tentos tricolores no novo estádio. Ao contrário do que se possa imaginar, o jogo teve um público baixo, com 6.619 torcedores. O ponta esquerda também marcou presença no primeiro Fla-Flu da história do Maraca, quando ajudou seu time a vencer por 2 a 1. Tite anotou seu primeiro gol no estádio em derrota por 5 a 4 para Bonsucesso.

Santos aparece em sua vida 

O que era para ser apenas mais um amistoso, foi um jogo que mudou o destino de Tite. O jovem anotou o terceiro e último gol da vitória carioca e chamou a atenção de Pinhegas, veterano ponteiro alvinegro. Como a proposta era boa, e Tite sentiu que não teria muito espaço no Flu devido à ascensão de Telê (mais tarde fez história como Telê Santana, um dos maiores técnicos da história do nosso futebol). A negociação custou Cr$ 100 mil aos cofres do Peixe e foi rápida, tanto que, cinco dias após o amistoso Tite já fez sua estreia pelo novo clube. O resultado não foi de boa recordação (derrota de 6 a 2 para o Palmeiras), mas começou ali, em 1951, uma trajetória de 11 anos, com 151 gols em 475 jogos, além de inúmeros títulos.

Aos poucos Tite começou a mostrar suas credenciais para a exigente torcida santista. Era um grande driblador e apesar de ser destro, tinha muita facilidade com a perna esquerda também. Fazia bastante gol para um jogador que atuava predominantemente pelos flancos do campo.

Para entender melhor sobre a importância de Tite e seus contemporâneos na história do Santos, é preciso analisar o cenário da época. O futebol estava em franco crescimento no Brasil, apesar da triste derrota para os uruguaios na Copa do Mundo de 1950. Os times iam se fortalecendo cada vez mais, com destaque para os rivais da capital paulista, região que detinha o maior poderia econômico do estado, como ainda acontece na atualidade.

O Santos vivia um jejum de 16 anos sem conquistas quando da estreia do novo reforço. Algumas voltas olímpicas foram percorridas pelos jogadores, como no Torneio Início do Campeonato Paulista de 1952, quando inclusive Tite marcou o gol do título em cima da Portuguesa de Desportos.

Ou seja, aquele elenco foi responsável por voltar a colocar o Santos nos holofotes do futebol paulista e trilhar o caminho para a geração que dominou o futebol mundial anos depois. Até o fim da sua primeira passagem em 1957, Tite ajudou o clube nos títulos paulistas de 1955 e 1956.

Além disso o atacante teve importância vital para a permanência de Pelé após o jovem camisa 10 passar por momentos de turbulência no começo da sua histórica carreira. E se alguém já ouviu Pelé cantando ou tocando violão, Tite é o responsável por isso, já que em várias oportunidades deu aulas particulares para o Rei do Futebol.

Saída para o rival

Em 1958 resolveu sair do Santos para defender o Corinthians. Estava perdendo espaço com a formação do maior time da história do futebol. Além disso, o Corinthians ofereceu salário maior, o que veio a calhar, ainda mais com a hipoteca que assumira recentemente. Sua passagem no rival da capital foi produtiva, com 30 gols em 94 jogos, dois deles contra o Barcelona em vitória por 5 a 3. Mostrou todo o seu potencial em excursão corintiana pela Europa, quando também anotou gols contra Sevilla, Valencia, Porto e Bayern de Munique. Sentiu na pele como era enfrentar seus ex companheiros em três oportunidades: derrotas por 6 a 1, 3 a 2 e 1 a 0.

Volta ao Santos para ganhar tudo

Em 1960, Tite voltou ao Peixe e foi parte do time que ganhou todos os títulos possíveis: Paulista, Taça Brasil, Libertadores, Mundial e diversas outras taças.

Tite tinha uma maneira ímpar de enxergar o mundo e criou seus próprios 10 mandamentos:*

1 – Amar a bola como a si mesmo;
2 – Não abusar do álcool;
3 – Praticar com a bola diariamente;
4 – Explorar o ponto fraco do adversário com malícia e dignidade;
5 – Honrar a camisa que veste;
6 – Respeitar seu colega de profissão;
7 – Usar de manhas e artimanhas com muita cautela;
8 – Não esmorecer nunca;
9 – Aprimorar o estado físico;
10 – Acatar as ordens do treinador, agir com bom senso, dialogar com o mesmo, para não se expor ao ridículo.

*Informações extraídas do livro Futebol x Música: Minha história e seus detalhes.