Quando eu era pequena e assistia as Olimpíadas, eu falava pra minha mãe que eu iria jogar uma. Ela falava que eu era maluca, mas eu já tinha escolhido. Eu iria jogar e seria no gol. Afinal, eu brincava de gol a gol com o meu primo e me saía bem. Por que não ser goleira nos Jogos Olímpicos?
Nasci em São Paulo e pratiquei de ginástica olímpica a kung fu no colégio. Já naquela época eu tinha uma certeza: iria para o esporte. Costumo dizer que o futebol me escolheu. Como no futebol tinham poucas meninas, quem jogava se destacava e os clubes se interessavam.
Comecei na rua com os meninos. Meu pai não gostava muito, tinha um certo preconceito. Quando estávamos jogando e meu pai estava para sair ou chegando, os meninos avisavam: “SEU PAI!”. E eu corria pra casa de novo. Quando meu pai sumia do trajeto, eu voltava pra rua.
Mas quem mandava em casa era minha mãe, então não tinha problema. Meu pai insistia pra eu não jogar porque eu era uma boa aluna. Antigamente, os pais ditavam as profissões e meu pai era desses: queria que eu fosse médica. Eu até gostava da ideia, tinha notas boas… Então, meu pai começou a se frustrar: “minha filha tem notas boas, jogar futebol? Não, é esporte de homem”.
Mas isso foi crescendo dentro de mim: ser jogadora de futebol. Jogava no meio dos meninos na educação física. Quando eu tinha 12 anos montaram um time feminino para disputar o campeonato da Associação Paulista. Minha mãe e meu irmão sempre me apoiaram e me levavam a treinos e jogos.
Enfrentamos um time chamado Círculo Militar e o pai de uma menina gostou do meu futebol e começou a me pagar 50 reais por jogo para atuar pelo time deles. E eu comecei a gostar da ideia, né? Eram oito jogos por mês, então era muita coisa pra quem tinha 12 anos e eu até ajudava em casa e conseguia pagar umas contas.
Depois, um time de Itanhaém me convidou para jogar a Copa Federação. Foi nessa competição que as coisas começaram a acontecer. Enfrentamos o São Paulo, eles me viram e quiseram me contratar. Mas o futsal deles era muito longe da minha casa e minha mãe não deixou. Então eles disseram: faz um teste no campo. Eu fui.
Foi engraçado que eu cheguei lá e me perguntaram qual posição eu jogava, falei ‘não sei, me coloca do meio pra frente’. ‘Então tenta de atacante’. Fui muito bem. ‘Então você é atacante, mas vamos testar na meia’. ‘Você foi bem na meia, melhor de meia’. Então, pra mim, eu era meia. Aí, um belo dia, faltou a danada da lateral-esquerda. Eu falei ‘não, lateral não! Eu queria do meio pra frente!’. ‘Não, vai lá, só pra gente ver, ela tá doente, só hoje’.
O jogo era do aspirantes do São Paulo contra o time profissional e o time de cima não tinha uma jogadora para a posição de lateral. O que eu aconteceu? Fui muito bem, o treinador me viu e falou “eu quero essa lateral aí”. Pronto.
Mas eu vi isso como uma oportunidade, sabe? Eu iria e depois tentaria voltar para a posição que eu achava que dava mais certo. Acabou que fiquei um tempo jogando de lateral e me destaquei. Depois, o São Paulo trocou de treinador e mudou para o 3-5-2. Aí eu me senti muito bem, porque eu atuava como meio-campo. Até porque eu nunca marquei muito bem, mas ofensivamente… Treinador dizia que eu subia de jato e voltava de charrete.
Comecei a me destacar muito. Quando completei 17 anos, recebi minha primeira convocação para a Seleção Brasileira. Não tinha categoria de base na época, foi direto para a principal. E então eu estava ali, ao lado de referências pra mim e que eu só via pela TV.
Com apenas 17 anos, fui a titular da Seleção Brasileira na Copa Ouro, nos EUA. Entre as competições seguintes da Seleção estava a Olimpíada de Sidney 2000. Eu continuei sendo convocada e atuando bem pelo São Paulo. Quando foi feita a preparação para as Olimpíadas, na Granja Comary, estávamos em mais meninas do que teria a lista final.
Eu estava lá, mas não tinha certeza que seria convocada mesmo jogando, pois era muito jovem ainda. Lembro que, antes da convocação, eles já tinham arrumado as malas de quem viajaria e eu fui procurar meu nome em alguma delas, porque aí eu saberia que iria. Achei. Não era como goleira, mas não é que eu iria mesmo disputar uma Olimpíada?
Eu nunca tinha visto estádio cheio. Quando entrei em campo naquela Olimpíada eu estava com medo. Recebia a bola e procurava um meião igual ao meu por perto para tocar. Fui titular dos Jogos Olímpicos com 17 anos. Foi o começo da minha trajetória na Seleção, aquele quarto lugar.
Depois das Olimpíadas eu recebi várias propostas de bolsas para jogar pelos times universidades dos Estados Unidos. Fui com 19 anos para estudar medicina. Fiquei duas semanas na faculdade e fui convocada para a Seleção. Eu disse que o futebol me escolheu, né?
Eles me disseram que se eu optasse por estudar nos EUA e atuar nos times universitários, não seria mais convocada.
Foi minha vez de escolher o futebol.
Meu pai, que na época já me apoiava, quis me matar. Eu disse a ele: eu vou atrás do meu sonho, não posso abrir mão dele agora. Quando estiver mais velha, eu poderei estudar ainda.
Quando voltei para o São Paulo, eles tinham fechado o futebol feminino. Joguei um ano no Corinthians e, depois disso, os clubes paulistas fecharam as portas e o Campeonato Paulista parou. O Internacional me convidou e fui parar no Rio Grande do Sul. Nessa época disputei um Mundial com a Seleção nos Estados Unidos e lá fui vista por um time austríaco. Foi novamente o futebol me escolhendo.
Eu não iria mais jogar. Estava desanimada de fazer aquilo somente por amor e não ganhar quase nada. Aos 20 anos eu tinha decidido parar. A proposta do SV Neulengbach tinha um plano de carreira que eu gostei muito. A equipe jogava a Champions League e eu sabia que aquilo seria uma porta pra chegar a um clube melhor. As propostas realmente vieram, mas eu fiquei tão grata ao clube austríaco por tudo que fizeram por mim que decidi ficar. Fui artilheira e melhor jogadora do campeonato lá por alguns anos.
Depois de quatro temporadas, surgiu uma proposta da liga americana: a mais forte do mundo. Tinha outras propostas, mas decidi ir para lá, pois os EUA são o país do futebol feminino e eu também queria aprender inglês. Com 25 anos fui para o Sky Blue FC. No começo, nós só perdíamos, mas depois de uma troca de treinador, ele me deixou muito à vontade e eu comecei a me sentir parte da engrenagem do time. Comecei a fazer gols e dar assistências e nós classificamos para os playoffs. Avançamos às semis e chegamos à final para enfrentar o Los Angeles, de ninguém mais, ninguém menos, do que a melhor jogadora do mundo: Marta.
Eles eram favoritos ao título, mas nós estávamos em uma fase tão boa, tão entrosadas que jogamos muito bem e passamos de azarões a primeiros campeões da WPS (Women’s Professional Soccer). Dois anos depois a saudade bateu e eu voltei ao Brasil. Continuei na Seleção e, após a Copa do Mundo de 2011, onde me destaquei, o Lyon me convidou. Não precisei nem pensar: o Lyon é até hoje o melhor time do mundo de futebol feminino e meu sonho era ganhar uma Champions League. Já tinha muitos títulos na carreira, mas faltava essa conquista.
Naquele ano, temporada 2011/12, nós fizemos a tríplice coroa com Copa, Campeonato e Champions. Após liga americana, austríaca, campeonato paulista, brasileiro… Meu currículo estava preenchido com os clubes. Eu considero preenchido também na Seleção por aquela medalha de prata em 2004. Foi uma mudança muito grande pro futebol feminino no Brasil, desde o aspecto tático até questão de imprensa.
Também conquistei a prata em Pequim 2008. Eu considero como título. Vendo a estrutura do futebol feminino brasileiro e comparando com as outras equipes… Tínhamos muito menos chances, mas muito mais talento e ele falou muito mais alto.
Foram 18 anos representando a camisa a Seleção e estive em praticamente todas as conquistas. Estar ali representando o sonho de tantas meninas durante tanto tempo foi muito gratificante pra mim.
Em 2013, eu recebi uma proposta do Avaldsnes IL, da Noruega. Era um time que estava subindo as divisões e tinha alcançado a elite naquele ano. Eles me explicaram isso e eu fiquei receosa. Time subindo agora, tomar só pau… E a reputação? Mas eu sempre gostei muito de desafios. Além disso, a proposta era muito boa financeiramente. Eu indiquei e eles contrataram a Debinha e a Andréia Rosa, então nós nos tornamos um time de brasileiras na Noruega e só isso já atraia mais torcida. Terminamos em terceiro naquele ano, que pra eles era ótimo para um primeiro ano, além de chegarmos à final da Copa.
No ano seguinte eu retornei, pois estava cansada de ficar longe da família e perder tantos momentos. Fui para o São José, onde vencemos a Libertadores e o Mundial, ganhando até como melhor jogadora da competição.
Acabei voltando ao Avaldsnes IL, da Noruega, por mais dois anos e fiz parte da Seleção Brasileira permanente até o Mundial de 2015. No ano seguinte, voltei ao Brasil para me aposentar, mas recebi uma proposta do PSG, da França, e não poderia negar. Fizemos uma boa temporada, chegando até nas semifinais da Champions League.
Então voltei ao São José para, enfim, me aposentar. Aos 32 anos, eu estava noiva e queria parar de jogar. Eu iria casar e tinha outros planos para minha vida. A cerimônia estava marcada para dezembro, mas em uma noite de outubro… Ele faleceu.
Foi infarto fulminante. Foi muito difícil porque ele estava dormindo comigo. Ele sofreu o infarto e eu não entendi o que era no primeiro momento, até que eu percebi ele gelado. Aí eu comecei a entender, veio o SAMU, mas não deu tempo de salvar.
Foi o pior momento. Era um cara que me apoiava muito. Eu já pensando em parar para viver a vida a dois e ele me dizia para não parar, pois eu ainda estava em alto nível.
Eu fiquei perdida. Não sabia o que fazer. Foi muito difícil. O que me deu força foram as pessoas que eu nem conhecia. Pessoas que eu achava que nem sabiam da minha existência, começaram a me mandar mensagem de apoio, dizendo que eu era espelho, que eu era ídolo pra eles. Eu não sabia o quanto eu era importante para milhares de pessoas até isso acontecer. Eu não conseguia fazer mais nada além do futebol, então resolvi continuar e encerrar a carreira por cima, como forma de agradecer a essas pessoas.
O futebol era minha missão. Eu tinha que continuar jogando por eles. Pelas pessoas que eu inspirava.
Cheguei a ir para os Estados Unidos, mas ainda estava muito abalada e voltei para o Brasil para ficar perto da família. Joguei no Audax para não ficar totalmente parada. Foi o único ano em que fiquei fora da Seleção. Então, a Emily Lima assumiu e eu retornei com a convocação dela. Depois, quando ela assumiu o Santos, pediu minha contratação e eu queria muito jogar aqui para completar os quatro grandes clubes de São Paulo e porque as Sereias da Vila são uma marca muito forte no feminino. Eu queria jogar no melhor clube feminino do Brasil e deu certo. Fico muito feliz de estar contribuindo não só dentro de campo, mas, por ser mais experiente, servindo de espelho para as mais novas.
Depois do que aconteceu com meu noivo eu encaro a vida muito diferente. Coisas que eu não pensava antes, hoje eu penso. Não consigo mais planejar a longo prazo, vivo muito intensamente porque eu não sei o dia de amanhã e tento aproveitar os bons momentos.
Talvez eu me aposente no final deste ano. Não é uma certeza, mas tem bastante chance. Estou na estrada há bastante tempo e as dores já começam a aparecer. Fisicamente e mentalmente fica mais cansativo, com as dores então…
Tenho vestígios da carreira: tornozelo com artrose, sem cartilagem no joelho e assim vai.
Eu não gosto de perder nem par ou ímpar, então eu quero vencer todas as competições. As Sereias da Vila não podem entrar pra chegar na final: tem que entrar pra vencer. Se for mesmo meu último ano, eu me imagino encerrando a carreira com conquistas. Temos três competições e quero parar colocando os três troféus aqui dentro da Vila Belmiro.
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